quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Crítica

A arte do imaginárioGustavo Galvão*

Especialistas de última hora não perdem tempo em apontar saídas para a crise de público vivida pelo cinema brasileiro pós-retomada. Clamam por uma produção que se justifique — seja como instrumento social, seja como algo viável comercialmente. O cinema já não se justifica por si só. No contexto que prestigia o pragmatismo e massacra a subjetividade do artista, a obra de Guilherme de Almeida Prado é um corpo estranho.

O fato é que Almeida Prado faz os filmes que gosta de ver, livrando-se da armadilha do senso comum ao estabelecer um compromisso com seus sonhos de cinéfilo. Em filmes como A dama do cine Shanghai, embora transborde mas referências aos clássicos do passado, sobressai uma visão particular.
Sua arte discute as questões humanas ao destrinchar o legado do cinema, esse grande fomentador do imaginário coletivo.

São duas as épocas que definem a narrativa. Por um lado, a história de amor entre uma mulher casada e uma gente imobiliário presta homenagem aos policiais noir da década de 1940. Eram os “filmes B”: produzidos à margem das superproduções de Hollywood, eles jogaram luz no lado sombrio da prosperidade norte-americana. No entanto, a década que prevalece a cada cena é a de sua realização, a de 1980 — evidente nos letreiros em néon, nos sintetizadores da trilha sonora e na composição visual.

Os mais de 20 anos que se passaram desde a estreia não comprometeram essa trama, e a razão disso está no fascínio do cineasta pelo cinema B. Ele exacerba tudo que há de artificial em A dama do cine Shanghai. O que estava acima do tom em 1988, continua sendo hoje. O desprezo pelo naturalismo prolonga a vida do filme, bem como potencializa a ambigüidade de situações carregadas de perversidade e erotismo.

Pistas falsas, subtramas que não fecham, insinuações duvidosas. Assim é o filme, no qual o cineasta combina uma inquietação quase existencial com a admiração pelo cinema de Alfred Hitchcock e thrillers à moda antiga. A essência está nos primeiros dez minutos: vê-se a platéia de um cinema antigo, mas o som vem do filme projetado na tela. A partir daí, o intercâmbio entre real e imaginário é intensificado a ponto de apagar a fronteira entre ambos. É o elogio do cinema como a arte do subconsciente revelado.

Em A dama do cine Shanghai, a desmoralização do real reafirma o poder do imaginário. Por isso a ênfase nos movimentos de câmera, um recurso para liberar o intenso fluxo de imagens gerado pelo personagem de Antônio Fagundes. Boa parte da ação se desenrola na mente dele, o homem que extravasa — no filme que vê — suas ambições de virilidade. Algo similar ocorre com Almeida Prado, que se realiza como investigador da complexidade humana ao extravasar a subjetividade de artista.

*Gustavo Galvão Atuou no jornal Correio Braziliense
como crítico e repórter, entre 1996 e
2003. Formado emjornalismo pela Universidade
de Brasília, fez especialização
em cinema na Espanha. É curador de
mostras audiovisuais e dirigiu sete curtas
de ficção, entre eles o premiado A
Vida ao Lado (2006), exibido em 25
festivais no Brasil e no exterior.

Nenhum comentário:

Postar um comentário