quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

As bestas da miséria


As bestas da miséria

Paulo Custódio de Oliveira

 

Como diria Graciliano Ramos, “a miséria é incômoda”. Em Baixio das bestas (2007), de Cláudio Assis ela é apresentada como decadência indigesta da Zona da Mata. Suportá-la é só para estômagos muito bem preparados. A miséria física que ronda o povoado onde acontecem as cenas do filme infecciona a moral e gera a miséria intelectual. O povoado circundado por canaviais está espremido pela economia do latifúndio e padece de inanição. A população definha-se trabalhando para poderosos invisíveis e leva uma vida sem qualquer perspectiva de melhora. As moradias capengas abrigam um arremedo de sociedade que reproduz a divisão irascível que sucateia o país: os muito pobres sem rumo e os quase ricos sem direção. O filme faz brotar desse monturo infectado alguns cogumelos cancerígenos que não pedem desculpas pelos aborrecimentos que causam aos enfadados imóveis.

É difícil não se agastar com o diretor por conta da excessiva atenção dada ao choque que deseja causar com o seu filme. Se ele queria indignar sua assistência, ele conseguiu.. A certa altura já não se pode mais distinguir se o desconforto moral acontece por se reconhecer contemporâneo do machismo injusto ou em virtude do ardil retórico que catalisa fotografia, sonoplastia e argumento que institui a lógica de nosso raciocínio. Cláudio Assis exagerou na dose de cenas asquerosas. Exigiu demais de uma fotografia carregada de sombras, apostou demais na esquematização das cenas, explorou desmedidamente as distâncias sociais. Isso tirou um pouco da naturalidade de uma história que poderia envolver mais.

É preciso acrescentar bem depressa, porém, que ela é envolvente. Se por envolvimento considerar-se a complexa condição de quem expressa repúdio e recusa contato com o que lhe causa nojo. Do ponto de vista estético, essa rejeição é tão interessante quanto o acolhimento, pois demonstra que o espetador foi tocado pela história ou pela maneira como ela foi contada. Uma das funções da arte é justamente alcançar os sentidos. A outra, é montar uma estrutura de significados cuja arquitetura possa ser assimilada no ato de fruição, mantendo-se fresca no momento em que os demais dados da realidade precisarem ser analisados em outras situações. Em outras palavras, a arte é uma forma de educação do homem para conceber o mundo.

Portanto, os exageros de Baixio das bestas fazem sentido. Em que pese o gosto que seu diretor nutre pela polêmica, o filme cumpre uma trajetória de reflexão interessante. Possui todos os ingredientes para uma análise da realidade nacional pelo viés do subdesenvolvimento. O primeiro mal abertamente explícito é o cancro a ser extirpado de nossa sociedade, a miséria em que está mergulhada uma grande parcela da população. O tratamento deve ser, não somente a extinção dela, mas também o cuidado com a metástase, ou seja com o seu espalhamento para outras regiões do corpo nacional.  Um segundo mal a ser combatido é a radical separação entre as classes sociais. As pessoas são ricas e tudo podem, desculpa-se nelas a improdutividade, o descaso, o alcance restrito de sua visão de mundo, o provincianismo nivelador da experiência sensível; ou são pobres e nada alcançam, desculpa-se delas o fato de serem o combustível da riqueza e como tal não há tempo nem espaço para a construção de uma subjetividade senciente. Nos dois casos, não se vê ambiente para um pensamento aglutinador, capaz de inventar mais justiça para o quadro.

Ao apontar essa estagnação geral da realidade recortada pelo filme, Rodolfo Lima, destaca a inércia das prostitutas: “Ceiça (Marcélia Cartaxo) é do tipo complacente. Não gosta, mas não luta contra, aceita a vida e o dia-a-dia (sic), como se não lhe fosse do interesse. Vive alheia. Bela (Hermila Guedes) se rebela e prova do gosto da não aceitação. Ao se recusar servir de diversão para o outro, se torna vítima. Dora (Dira Paes) é a mais interessada na ‘profissão’, porém tal qualidade não lhe traz proveito nenhum. Qual caminho seguir: aceitar, se rebelar ou aproveitar o momento. Em Baixio das Bestas, não há respostas, só perguntas”. O alheamento, a rebeldia gratuita e a escolha obtusa são cobradas pela vida. Na visão de Cláudio Assis não há perdão para esses pecados.

Mas, por que muitos repudiam o filme mesmo aceitando a realidade dos fatos por ele coletados? Porque têm estômagos sensíveis demais, diria Graciliano Ramos. As bestas da miséria impedem a beleza de filmes e de literaturas. Se forem retiradas da arte, esta “se purificará, tornar-se-á inofensiva e cor-de-rosa, não provocará o mau humor de ninguém, não perturbará a digestão dos que podem comer. Amém”.[1]

 

Paulo Custódio de Oliveira. Doutor em Teoria literária, Coordenador da Editora da UFGD, Professor de Literatura brasileira na FACALE, Vice-presidente do Cineclube UFGD, Coordenador do Grupo de Estudos Interartes, Pesquisador da relação do Cinema com a Literatura.

 



[1] RAMOS, Graciliano. Linhas Tortas. Rio de Janeiro/São Paulo: Ed. Record, 1981.p. 136

Neste sábado (13) o projeto de extensão Cineclube UFGD exibe o filme de Claudio Assis. “Baixio das Bestas”.


Cineclube UFGD exibe “Baixio das Bestas”

Neste sábado (13) o projeto de extensão Cineclube UFGD exibe o filme de Claudio Assis. “Baixio das Bestas”.

 

É um filme brasileiro de 2006, do gênero drama. O filme, com cenas fortes e bastante explicitas, reflete sobre a condição da mulher desprotegida, abordando temas dramáticos como a prostituição ilegal e a exploração sexual de menores. Locações em Nazaré da Mata e canções do maracatu rural.

A sessão é gratuita e aberta para toda comunidade, às 17h no cineauditório da Unidade I da UFGD (Rua João Rosa Góes, 1761, Vila Progresso).


terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Cineclube UFGD exibe “Ensaio sobre Cegueira”


Cineclube UFGD exibe “Ensaio sobre Cegueira”

Neste sábado (06) o projeto de extensão Cineclube UFGD exibe o filme de Fernando Meirelles, “Ensaio sobre a Cegueira”.

 

Uma inexplicável epidemia chamada de "cegueira branca" atinge, sem explicações, pessoas que passam a ver uma superfície leitosa. Pouco a pouco, se espalha pelo país. À medida que os afetados são colocados em quarentena e os serviços oferecidos pelo estado começam a falhar as pessoas passam a lutar por suas necessidades básicas, expondo seus instintos primários. Nesta situação, a única pessoa que ainda consegue enxergar é a mulher de um médico (Julianne Moore), que juntamente com um grupo de internos tenta encontrar a humanidade perdida.

 

A sessão é gratuita e aberta para toda comunidade, às 17h no cineauditório da Unidade I da UFGD (Rua João Rosa Góes, 1761, Vila Progresso).

O cinema sensível de Zuzu Angel

Paulo Custódio de Oliveira.

 

Que pode um filme mudar na retina cansada das pessoas? Muita coisa, se considerarmos a diversidade de olhos que ele pode alcançar. As telas de cinema são consideradas por muitos como diversão inconsequente, porque um grande número de filmes hollywoodianos e brasileiros denunciam a despreocupação política de alguns diretores. Mas o contrário não é raro. O cinema tem o poder de evocar certas feridas que marcaram profundamente a alma de um povo inteiro e de questionar a história oficial. Um exemplo deste último caso é Zuzu Angel, o filme de Sergio Rezende lançado em agosto de 2006 e exibido pelo CINECLUBE UFGD.

O que me fascinou nesse filme foi o crescimento da consciência política da personagem central, a figurinista Zuzu Angel, apesar do tom didático assumido pelo seu diretor. Ela é mãe do guerrilheiro Stuart Angel Jones, morto pela repressão durante uma sessão de tortura, no período da ditadura militar. Se no começo da história ela é uma mocinha comportada e satisfeita com a própria vida, ao final do filme ela apresenta atitudes impensáveis para uma mulher frágil e dedicada ao exercício do luxo.

Grande parte do espanto dessa transformação deve ser creditado à habilidade da atriz Patrícia Pilar, que conseguiu, ao longo do tempo do filme, ir amalgamando moda e política nesta personagem histórica do Brasil. Esses dois elementos, aparentemente opositivos, acabam imbricados. Como poderíamos esperar que do universo da moda, recheado de futilidades, tão indiferente aos problemas políticos e sociais, pudesse sair uma reflexão ou uma ação política? Pois aconteceu. A moda se tornou uma ferramenta de reflexão e de discussão das péssimas condições da democracia no Estado brasileiro depois do golpe civil/militar de 1964. A mulher que padeceu discriminação por ser separada, a figurinista glamurosa, a estilista de mulheres de militares, não apenas “pensou” uma opção política. A ousadia que Zuzu demonstrou na costura, ao reagir à mesmice francesa da moda internacional, foi transformadoa em grito lançado contra as forças políticas e militares que dominavam o Estado brasileiro.

O cuidado na construção da personagem não pode deixar de ser elogiado, ainda que se perceba ali algum comedimento típico da Globofilmes. Só depois de subir a escura tela dos créditos é que se percebe que o rostinho sereno da atriz nos primeiros momentos do filme se transfigurou. É espantoso como a transformação passa despercebida por nossos olhos hipnotizados pela fluidez da narrativa. Ao final do filme, suas olheiras estão fundas, seus olhos claros estão muito abertos, a boca crispada e o corpo esguio da atriz parecem uma adaga sequiosa por retalhar o corpo da história e expor suas vísceras.

Mas é apressado e pueril imaginar que a verdade histórica seja a razão primordial da existência desse filme. Se as condições políticas do país não tivessem se alterado bastante, o filme não poderia sequer ter sido rodado. Além disso, a Globofilmes não é propriamente um modelo de preocupação política para investir tempo, dinheiro (o filme custou 6,5 milhões) e o peso de suas estrelas em algo que pretende apenas “construir consciência política”. O filme existe porque há um público disposto a pagar´pra vê-lo. O cinema é uma invenção da indústria cultural e, portanto, deve gerar lucro.

Mas longe de nos afastar da reflexão, isso torna o filme mais interessante ainda. Porque questiona o combustível da memória. Como ficamos tão decididos a impedir que esse momento da história brasileira “caia no esquecimento”? De que processos se vale o Cinema para alcançar a mente de pessoas que não viveram o tempo das restrições democráticas e das perseguições políticas?

Zuzu Angel é um filme perigoso por conta disso. Ele não se contenta em contar as histórias de pessoas do tempo da ditadura. Ele apresenta os sentimentos das figuras históricas em cores e sons vívidos, colocando-os ao alcance da consciência dos nossos contemporâneos. Quando compartilhada assim, a história promove uma mudança abissal em nossos conceitos políticos. Ocorre mais que entendimento, nós “sofremos com” a comedida costureirinha mineira que alcançou o mundo. É comovente vê-la transformar-se em uma ativista por conta de sua experiência trágica de mãe. Isso dá legitimidade a suas palavras e performances audazes. É por essas e outras que o cinema é o maior contador de histórias do nosso tempo.

 

Paulo Custódio de Oliveira. Doutor em Teoria literária, Coordenador da Editora da UFGD, Professor de Literatura brasileira na FACALE,  Vice-presidente do Cineclube UFGD, Coordenador do Grupo de Estudos Interartes, Pesquisador da relação do Cinema com a Literatura.