terça-feira, 2 de dezembro de 2014


O cinema sensível de Zuzu Angel

Paulo Custódio de Oliveira.

 

Que pode um filme mudar na retina cansada das pessoas? Muita coisa, se considerarmos a diversidade de olhos que ele pode alcançar. As telas de cinema são consideradas por muitos como diversão inconsequente, porque um grande número de filmes hollywoodianos e brasileiros denunciam a despreocupação política de alguns diretores. Mas o contrário não é raro. O cinema tem o poder de evocar certas feridas que marcaram profundamente a alma de um povo inteiro e de questionar a história oficial. Um exemplo deste último caso é Zuzu Angel, o filme de Sergio Rezende lançado em agosto de 2006 e exibido pelo CINECLUBE UFGD.

O que me fascinou nesse filme foi o crescimento da consciência política da personagem central, a figurinista Zuzu Angel, apesar do tom didático assumido pelo seu diretor. Ela é mãe do guerrilheiro Stuart Angel Jones, morto pela repressão durante uma sessão de tortura, no período da ditadura militar. Se no começo da história ela é uma mocinha comportada e satisfeita com a própria vida, ao final do filme ela apresenta atitudes impensáveis para uma mulher frágil e dedicada ao exercício do luxo.

Grande parte do espanto dessa transformação deve ser creditado à habilidade da atriz Patrícia Pilar, que conseguiu, ao longo do tempo do filme, ir amalgamando moda e política nesta personagem histórica do Brasil. Esses dois elementos, aparentemente opositivos, acabam imbricados. Como poderíamos esperar que do universo da moda, recheado de futilidades, tão indiferente aos problemas políticos e sociais, pudesse sair uma reflexão ou uma ação política? Pois aconteceu. A moda se tornou uma ferramenta de reflexão e de discussão das péssimas condições da democracia no Estado brasileiro depois do golpe civil/militar de 1964. A mulher que padeceu discriminação por ser separada, a figurinista glamurosa, a estilista de mulheres de militares, não apenas “pensou” uma opção política. A ousadia que Zuzu demonstrou na costura, ao reagir à mesmice francesa da moda internacional, foi transformadoa em grito lançado contra as forças políticas e militares que dominavam o Estado brasileiro.

O cuidado na construção da personagem não pode deixar de ser elogiado, ainda que se perceba ali algum comedimento típico da Globofilmes. Só depois de subir a escura tela dos créditos é que se percebe que o rostinho sereno da atriz nos primeiros momentos do filme se transfigurou. É espantoso como a transformação passa despercebida por nossos olhos hipnotizados pela fluidez da narrativa. Ao final do filme, suas olheiras estão fundas, seus olhos claros estão muito abertos, a boca crispada e o corpo esguio da atriz parecem uma adaga sequiosa por retalhar o corpo da história e expor suas vísceras.

Mas é apressado e pueril imaginar que a verdade histórica seja a razão primordial da existência desse filme. Se as condições políticas do país não tivessem se alterado bastante, o filme não poderia sequer ter sido rodado. Além disso, a Globofilmes não é propriamente um modelo de preocupação política para investir tempo, dinheiro (o filme custou 6,5 milhões) e o peso de suas estrelas em algo que pretende apenas “construir consciência política”. O filme existe porque há um público disposto a pagar´pra vê-lo. O cinema é uma invenção da indústria cultural e, portanto, deve gerar lucro.

Mas longe de nos afastar da reflexão, isso torna o filme mais interessante ainda. Porque questiona o combustível da memória. Como ficamos tão decididos a impedir que esse momento da história brasileira “caia no esquecimento”? De que processos se vale o Cinema para alcançar a mente de pessoas que não viveram o tempo das restrições democráticas e das perseguições políticas?

Zuzu Angel é um filme perigoso por conta disso. Ele não se contenta em contar as histórias de pessoas do tempo da ditadura. Ele apresenta os sentimentos das figuras históricas em cores e sons vívidos, colocando-os ao alcance da consciência dos nossos contemporâneos. Quando compartilhada assim, a história promove uma mudança abissal em nossos conceitos políticos. Ocorre mais que entendimento, nós “sofremos com” a comedida costureirinha mineira que alcançou o mundo. É comovente vê-la transformar-se em uma ativista por conta de sua experiência trágica de mãe. Isso dá legitimidade a suas palavras e performances audazes. É por essas e outras que o cinema é o maior contador de histórias do nosso tempo.

 

Paulo Custódio de Oliveira. Doutor em Teoria literária, Coordenador da Editora da UFGD, Professor de Literatura brasileira na FACALE,  Vice-presidente do Cineclube UFGD, Coordenador do Grupo de Estudos Interartes, Pesquisador da relação do Cinema com a Literatura.

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