O
cinema sensível de Zuzu Angel
Paulo Custódio de Oliveira.
Que pode um filme mudar na retina cansada das pessoas? Muita
coisa, se considerarmos a diversidade de olhos que ele pode alcançar. As telas
de cinema são consideradas por muitos como diversão inconsequente, porque um
grande número de filmes hollywoodianos e brasileiros denunciam a despreocupação
política de alguns diretores. Mas o contrário não é raro. O cinema tem o poder
de evocar certas feridas que marcaram profundamente a alma de um povo inteiro e
de questionar a história oficial. Um exemplo deste último caso é Zuzu Angel, o
filme de Sergio Rezende lançado em agosto de 2006 e exibido pelo CINECLUBE
UFGD.
O que me fascinou nesse filme foi o crescimento da
consciência política da personagem central, a figurinista Zuzu Angel, apesar do
tom didático assumido pelo seu diretor. Ela é mãe do guerrilheiro Stuart Angel
Jones, morto pela repressão durante uma sessão de tortura, no período da
ditadura militar. Se no começo da história ela é uma mocinha comportada e
satisfeita com a própria vida, ao final do filme ela apresenta atitudes
impensáveis para uma mulher frágil e dedicada ao exercício do luxo.
Grande parte do espanto dessa transformação deve ser
creditado à habilidade da atriz Patrícia Pilar, que conseguiu, ao longo do
tempo do filme, ir amalgamando moda e política nesta personagem histórica do
Brasil. Esses dois elementos, aparentemente opositivos, acabam imbricados. Como
poderíamos esperar que do universo da moda, recheado de futilidades, tão
indiferente aos problemas políticos e sociais, pudesse sair uma reflexão ou uma
ação política? Pois aconteceu. A moda se tornou uma ferramenta de reflexão e de
discussão das péssimas condições da democracia no Estado brasileiro depois do
golpe civil/militar de 1964. A mulher que padeceu discriminação por ser
separada, a figurinista glamurosa, a estilista de mulheres de militares, não
apenas “pensou” uma opção política. A ousadia que Zuzu demonstrou na costura,
ao reagir à mesmice francesa da moda internacional, foi transformadoa em grito
lançado contra as forças políticas e militares que dominavam o Estado
brasileiro.
O cuidado na construção da personagem não pode deixar de ser
elogiado, ainda que se perceba ali algum comedimento típico da Globofilmes. Só
depois de subir a escura tela dos créditos é que se percebe que o rostinho
sereno da atriz nos primeiros momentos do filme se transfigurou. É espantoso
como a transformação passa despercebida por nossos olhos hipnotizados pela
fluidez da narrativa. Ao final do filme, suas olheiras estão fundas, seus olhos
claros estão muito abertos, a boca crispada e o corpo esguio da atriz parecem
uma adaga sequiosa por retalhar o corpo da história e expor suas vísceras.
Mas é apressado e pueril imaginar que a verdade histórica
seja a razão primordial da existência desse filme. Se as condições políticas do
país não tivessem se alterado bastante, o filme não poderia sequer ter sido
rodado. Além disso, a Globofilmes não é propriamente um modelo de preocupação
política para investir tempo, dinheiro (o filme custou 6,5 milhões) e o peso de
suas estrelas em algo que pretende apenas “construir consciência política”. O
filme existe porque há um público disposto a pagar´pra vê-lo. O cinema é uma
invenção da indústria cultural e, portanto, deve gerar lucro.
Mas longe de nos afastar da reflexão, isso torna o filme
mais interessante ainda. Porque questiona o combustível da memória. Como
ficamos tão decididos a impedir que esse momento da história brasileira “caia
no esquecimento”? De que processos se vale o Cinema para alcançar a mente de
pessoas que não viveram o tempo das restrições democráticas e das perseguições
políticas?
Zuzu Angel é um filme perigoso por conta disso. Ele não se
contenta em contar as histórias de pessoas do tempo da ditadura. Ele apresenta
os sentimentos das figuras históricas em cores e sons vívidos, colocando-os ao
alcance da consciência dos nossos contemporâneos. Quando compartilhada assim, a
história promove uma mudança abissal em nossos conceitos políticos. Ocorre mais
que entendimento, nós “sofremos com” a comedida costureirinha mineira que
alcançou o mundo. É comovente vê-la transformar-se em uma ativista por conta de
sua experiência trágica de mãe. Isso dá legitimidade a suas palavras e
performances audazes. É por essas e outras que o cinema é o maior contador de
histórias do nosso tempo.
Paulo Custódio de Oliveira. Doutor em Teoria
literária, Coordenador da Editora da UFGD, Professor de Literatura brasileira
na FACALE, Vice-presidente do Cineclube
UFGD, Coordenador do Grupo de Estudos Interartes, Pesquisador da relação do
Cinema com a Literatura.
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