As
bestas da miséria
Paulo
Custódio de Oliveira
Como diria Graciliano Ramos, “a miséria é incômoda”. Em
Baixio das bestas (2007), de Cláudio Assis ela é apresentada como decadência
indigesta da Zona da Mata. Suportá-la é só para estômagos muito bem preparados.
A miséria física que ronda o povoado onde acontecem as cenas do filme
infecciona a moral e gera a miséria intelectual. O povoado circundado por
canaviais está espremido pela economia do latifúndio e padece de inanição. A
população definha-se trabalhando para poderosos invisíveis e leva uma vida sem
qualquer perspectiva de melhora. As moradias capengas abrigam um arremedo de
sociedade que reproduz a divisão irascível que sucateia o país: os muito pobres
sem rumo e os quase ricos sem direção. O filme faz brotar desse monturo
infectado alguns cogumelos cancerígenos que não pedem desculpas pelos
aborrecimentos que causam aos enfadados imóveis.
É difícil não se agastar com o diretor por conta da
excessiva atenção dada ao choque que deseja causar com o seu filme. Se ele
queria indignar sua assistência, ele conseguiu.. A certa altura já não se pode
mais distinguir se o desconforto moral acontece por se reconhecer contemporâneo
do machismo injusto ou em virtude do ardil retórico que catalisa fotografia, sonoplastia
e argumento que institui a lógica de nosso raciocínio. Cláudio Assis exagerou
na dose de cenas asquerosas. Exigiu demais de uma fotografia carregada de
sombras, apostou demais na esquematização das cenas, explorou desmedidamente as
distâncias sociais. Isso tirou um pouco da naturalidade de uma história que
poderia envolver mais.
É preciso acrescentar bem depressa, porém, que ela é
envolvente. Se por envolvimento considerar-se a complexa condição de quem
expressa repúdio e recusa contato com o que lhe causa nojo. Do ponto de vista
estético, essa rejeição é tão interessante quanto o acolhimento, pois demonstra
que o espetador foi tocado pela história ou pela maneira como ela foi contada.
Uma das funções da arte é justamente alcançar os sentidos. A outra, é montar
uma estrutura de significados cuja arquitetura possa ser assimilada no ato de
fruição, mantendo-se fresca no momento em que os demais dados da realidade
precisarem ser analisados em outras situações. Em outras palavras, a arte é uma
forma de educação do homem para conceber o mundo.
Portanto, os exageros de Baixio das bestas fazem sentido. Em
que pese o gosto que seu diretor nutre pela polêmica, o filme cumpre uma
trajetória de reflexão interessante. Possui todos os ingredientes para uma
análise da realidade nacional pelo viés do subdesenvolvimento. O primeiro mal
abertamente explícito é o cancro a ser extirpado de nossa sociedade, a miséria
em que está mergulhada uma grande parcela da população. O tratamento deve ser,
não somente a extinção dela, mas também o cuidado com a metástase, ou seja com
o seu espalhamento para outras regiões do corpo nacional. Um segundo mal a ser combatido é a radical
separação entre as classes sociais. As pessoas são ricas e tudo podem,
desculpa-se nelas a improdutividade, o descaso, o alcance restrito de sua visão
de mundo, o provincianismo nivelador da experiência sensível; ou são pobres e
nada alcançam, desculpa-se delas o fato de serem o combustível da riqueza e
como tal não há tempo nem espaço para a construção de uma subjetividade
senciente. Nos dois casos, não se vê ambiente para um pensamento aglutinador,
capaz de inventar mais justiça para o quadro.
Ao apontar essa estagnação geral da realidade recortada pelo
filme, Rodolfo Lima, destaca a inércia das prostitutas: “Ceiça (Marcélia
Cartaxo) é do tipo complacente. Não gosta, mas não luta contra, aceita a vida e
o dia-a-dia (sic), como se não lhe fosse do interesse. Vive alheia. Bela
(Hermila Guedes) se rebela e prova do gosto da não aceitação. Ao se recusar servir
de diversão para o outro, se torna vítima. Dora (Dira Paes) é a mais
interessada na ‘profissão’, porém tal qualidade não lhe traz proveito nenhum.
Qual caminho seguir: aceitar, se rebelar ou aproveitar o momento. Em Baixio das
Bestas, não há respostas, só perguntas”. O alheamento, a rebeldia gratuita e a
escolha obtusa são cobradas pela vida. Na visão de Cláudio Assis não há perdão
para esses pecados.
Mas, por que muitos repudiam o filme mesmo aceitando a
realidade dos fatos por ele coletados? Porque têm estômagos sensíveis demais,
diria Graciliano Ramos. As bestas da miséria impedem a beleza de filmes e de
literaturas. Se forem retiradas da arte, esta “se purificará, tornar-se-á
inofensiva e cor-de-rosa, não provocará o mau humor de ninguém, não perturbará
a digestão dos que podem comer. Amém”.[1]
Paulo Custódio de Oliveira. Doutor em Teoria
literária, Coordenador da Editora da UFGD, Professor de Literatura brasileira
na FACALE, Vice-presidente do Cineclube UFGD, Coordenador do Grupo de Estudos
Interartes, Pesquisador da relação do Cinema com a Literatura.